A escuridão da noite encobria as casas em estilo açoriano e as grossas paredes brancas de cal da imponente Igreja Matriz de Santo Amaro, inaugurada 51 anos antes. Abaixo, na encosta do Rio Jacuí, o único ruído era o das águas correndo, caudalosas, rumo ao Guaíba. Até que o silêncio foi quebrado pelo barulho de barcos atracando na praia e de soldados desembarcando às pressas, com seus sabres e adagas tinindo na cintura. Então, o estampido de tiros de mosquetão despertou o vilarejo.
Começava, naquela noite de abril de 1838, mais um ataque da esquadra imperial comandada por Francisco Pedro de Abreu, também conhecido por Chico Pedro ou Moringue, contra tropas farrapas em território de Santo Amaro, hoje distrito de General Câmara e destino de muitos moradores do Vale do Rio Pardo nos fins de semana quentes de verão. O alvo, na ocasião, era um grupo liderado pelo tenente-coronel farroupilha Antônio Joaquim Dorneles. Filho de uma família tradicional de Santo Amaro, e oficial do Império antes de aderir à causa republicana, Dorneles era figura temida pelos legalistas. Contava-se que, certa vez, um homem teria morrido de susto só de saber que tropas sob o comando de Dorneles se aproximavam.
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Mas Chico Pedro também possuía uma fama que o precedia. Natural de Porto Alegre, havia estreado na Guerra dos Farrapos em combate contra Bento Gonçalves em 31 de março de 1836, nas imediações de Arroio dos Ratos. Desde então, Moringue foi galgando posições de comando entre os imperiais. Em 1837, então com 26 anos, já tinha o posto de capitão. Entre aliados e inimigos, ganhou fama de destemido, inquieto, truculento e talhado para missões perigosas. Gostava de atacar à noite, pegando os oponentes de surpresa.
Tal estratégia, mais uma vez, funcionaria no ataque a Dorneles em Santo Amaro, naquela noite de abril. Surpreendidos, os farrapos tiveram que bater em retirada, concedendo a Moringue sua quarta vitória em combates travados naquele vilarejo. E não seria a última. Segundo relata o pesquisador e escritor Francisco Pereira Rodrigues, no livro Santo Amaro: QG de Chico Pedro - Fragmentos da História Rio-Grandense (Martins Livreiro, 2003), Abreu comandou seus homens em, pelo menos, seis batalhas na vila colonizada por açorianos. Venceu todas.
Santo Amaro, então dividida entre simpatizantes de republicanos e legalistas, acabou transformada por Moringue em quartel-general dos imperiais, de onde ele partia para investidas em outros pontos da província e para onde retornava após os confrontos. Trata-se de uma faceta pouco difundida da história do Rio Grande do Sul e de Santo Amaro, talvez porque – e essa é a opinião do pesquisador Francisco Pereira Rodrigues – envolve um inimigo feroz dos heróis farrapos, o qual fez a balança pender para o lado imperial na Revolução Farroupilha. Pior: foi o comandante do controverso Massacre de Porongos, um dos episódios menos honrosos da Guerra dos Farrapos. Entretanto, não há como negar que foi, também, um dos personagens que deixaram marcas, a ferro, fogo e sangue, no solo da região.